sábado, 16 de janeiro de 2010

Yaish ibn Yahya «ben Rabbi» (= Mem Ramires): Um príncipe judeu, herói da conquista de Santarém


A mitificação da figura do primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques, conheceu várias fases, a primeira das quais terá tido início nos fins do século XII, tendo sido levada a cabo pelos monges de Santa Cruz de Coimbra, mosteiro fundado em 1131 por D. Teotónio (depois S. Teotónio) e onze outros religiosos, pertencentes à ordem dos Cónegos Regrantes de S. Agostinho.

Uma longa narrativa épica em latim (um poema em prosa, na feliz designação de A. Herculano), com o pomposo título de “Quomodo sit capta Sanctaren civitas a rege Alfonso comitis Henrici filio” («Como foi capturada a cidade de Santarém pelo rei Afonso, filho do conde Henrique») eleva a figura do primeiro rei de Portugal à altura de um herói mítico. Incluído por A. Herculano na “Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores” (V. I), publicado em 1854, este manuscrito seria por ele renomeado de “De expugnatione Scalabis” («Da conquista de Santarém»), nome pelo qual é actualmente conhecido.

Os pormenores da empresa são sobejamente conhecidos: Afonso Henriques, querendo conquistar aos Mouros a poderosa cidade de Santarém, simultaneamente um ninho de aguerridas vespas de onde partiam as algaras que açoitavam as terras de Coimbra e uma barreira que impedia a progressão das suas tropas pela Balatha muçulmana (Estremadura) e mais para sul, para as terras de Além Tejo, urdiu a melhor forma de a tomar.


É então enviado um espião a Santarém, Mem Ramires de seu nome, cavaleiro e homem de confiança do rei, que percorre incógnito a cidade e o poderoso castelo do governador, Abu Zakariya, para avaliar as suas vulnerabilidades defensivas. Cumprida com êxito a missão, regressa Mem Ramires a Coimbra com as preciosas informações. Afonso Henriques reúne então uma pequena força militar, constituída por cavaleiros da sua confiança, e parte para Santarém, que alcança ao fim de quatro dias, jornadeando de noite e acampando de dia, de modo a iludir os esculcas sarracenos. Numa noite de sábado, de 14 para 15 de Março de 1147, socorrendo-se de dez escadas de assalto, um grupo de homens capitaneados por Mem Ramires sobe às muralhas, domina as sentinelas, hastea o pendão real e abre os portões para que o resto do exército possa entrar. O formidável castelo de Santarém voltava às mãos portuguesas, desta vez para sempre.

Eis, muito resumidamente, o essencial da narrativa épica «De Expugnatione Scalabis», que por ter sido escrita no final do século XII pode ser considerado um relato credível sobre a conquista de Santarém e onde Mem Ramires nos aparece como figura-chave, aliada à do rei. Mas quem é afinal Mem Ramires, esse cavaleiro com quem o rei de Portugal partilhava os seus sonhos militares? Não sabemos. É uma personagem misteriosa. Não pertence às antigas famílias que possuem honras e tenências entre o Minho e o Vouga, nem pertence à nobreza mais recente, de origem franca ou moçárabe, que habita em Coimbra, enriquece com a guerra e vive de postos de alcaides. A verdade é que este herói surge do nada para conquistar Santarém e eclipsa-se de seguida, como se na verdade nunca tivesse existido. Mas «De Expugnatione Scalabis», por ter sido escrita no final do século XII - seguramente com muitos dos seus participantes ainda vivos – pode e deve ser considerado um relato credível. Acreditamos que o essencial da história está lá… mas adaptado pelos historiógrafos de Santa Cruz. Vejamos como e porquê.

Olhemos primeiro para a realidade social e económica da cidade que Mem Ramires ajudou a conquistar. Santarém era um paraíso na Terra para os muçulmanos. A fertilidade das suas lezírias era lendária (em 40 dias as searas estavam prontas para ceifar!) e o rendimento médio do grão era de cem por um, sendo nos melhores anos de duzentos por um. Os melões eram enormes e doces como o mel. Hortas e pomares produziam legumes e frutos excelentes. O seu porto fluvial recebia os barcos de alto mar que, subindo o Tejo, abasteciam directamente a cidade.

Fonte: www.flickr.com

Esta riqueza agrícola – que alguns geógrafos árabes assemelham à do Egipto, comparando as cheias do Tejo às do Nilo – e a necessidade de a comercializar para vários pontos do Gharb e do Andalus, fizera domiciliar em Santarém uma numerosa comunidade judaica, talvez desde os tempos do Império Romano, e não é de estranhar que todos os relatos a indiquem como tendo a mais antiga sinagoga do ocidente peninsular. Por outro lado Coimbra dispunha igualmente de uma numerosa comunidade judaica, aí instalada provavelmente nos tempos em que Qulumriyya era uma cidade muçulmana, e que aí permanecera depois da reconquista cristã.

Quando Afonso Henriques, decidido a conquistar Santarém, opta por enviar um espião à cidade, ele sabe que esse homem não terá tarefa fácil. Santarém, para além do seu castelo quase inexpugnável, é uma caserna. A sua numerosa e aguerrida guarnição militar tem uma longa experiência de guerra, e o alcaide, Abu Zakariya, é uma velha raposa, que tem sabido conter os Portugueses nas suas fronteiras, pela latitude de Leiria, ameaçando o castelo e fustigando os seus termos. Santarém é um ninho de víboras, e o rei de Portugal sabe-o bem. Ao menor deslize o seu espião será denunciado e morto.

O homem que enviar a Santarém não pode levantar quaisquer suspeitas entre os Mouros. Tem de caminhar entre eles como se fosse mais um habitante da cidade. Um cristão, mesmo um moçárabe de Coimbra, conhecedor da língua de Mafoma, poderia fazer perigar a missão, pois não teria contactos em Santarém, que lhe servissem de retaguarda em caso de suspeita. Em Coimbra viviam cristãos e judeus, e em Santarém viviam muçulmanos e judeus. E nunca cristãos e muçulmanos deixaram de manter relações comerciais entre si, mesmo nos piores períodos de guerra. Os judeus encarregavam-se de fazer a ponte entre os dois mundos… como o faziam ali, entre Coimbra e Santarém. Podendo apostar na lealdade de um judeu de Coimbra, quem senão um elemento desta comunidade para entrar tranquilamente em Santarém sem despertar as atenções dos Mouros? Quem mais que um almocreve judeu – ou alguém assim disfarçado, mas com sólidas ligações à comunidade judaica de Santarém – para efectuar uma empresa tão arriscada sem atrair as atenções?

A ideia terá congeminado no espírito de Afonso Henriques, e rapidamente se tornou uma certeza para o rei: para que a missão de espionagem fosse um sucesso o homem a enviar a Santarém teria de ser um judeu, um aliado da sua inteira confiança com ligações sólidas na cidade. Aí poderia mover-se à vontade, entre o seu povo, sem que os muçulmanos dele desconfiassem. Afinal, seria apenas mais um judeu na sua azáfama mercantil…

O rei de Portugal tinha o homem certo para essa missão. O seu nome era Yaish ibn Yahya, e embora português de nascimento, nas suas veias corria o sangue do rei David, de quem era um dos mais insignes descendentes. Por esse facto era também conhecido por Ha-Nasi («o príncipe»). Era filho de Hiyya al-Daudi, venerável rabino, conselheiro de Afonso Henriques, gaon dos judeus de Sefarad (acabaria por falecer numa das suas viagens, em 1154) e poeta litúrgico, cujos hinos ainda hoje são usados nas comunidades sefaradim, um pouco por todo o mundo.


Longa viagem fizera Hiyya al-Daudi até chegar a Portugal, pois nascera na Babilónia, em Pumbedita, bisneto de Hezekiah Gaon, o 38.º exilarca e último líder desta grande academia talmúdica, torturado até à morte em 1040. Não se sabe em que circunstâncias aparece Hiyya al-Daudi na corte portuguesa, em Coimbra, mas não é de excluir ter vindo para Portugal com D. Henrique, pai de Afonso Henriques, aquando da peregrinação deste à Palestina entre os anos de 1103 e 1104, acompanhado por D. Maurício Burdino, o bispo de Coimbra (que se tornaria depois o antipapa Gregório VIII, entre 1118 e 1121).

São estes os pergaminhos do homem que tornou possível a conquista da cidade de Santarém, o príncipe judeu que os cónegos de Santa Cruz, indignados com a mitificação de um herói de religião judaica, tornaram cristão. E deste modo, com uma simples adaptação fonética do nome, o judeu Ben Rabbi tornava-se o cristão Mem Ramires.

Yaish ibn Yahya, conhecido entre o seu povo por «Ben Rabbi» e por «Ha-Nasi», e com a alcunha entre os cristãos de «O Negro», é o fundador da mais distinta família judia portuguesa (e uma das mais distintas famílias judias europeias), cujos descendentes, com os apelidos Ibn Yahya, Negro e Preto/Pretto, podemos encontrar um pouco por todo o mundo. Um excelente guerreiro, em cujas veias corria o intrépido sangue do rei David, Yaish ibn Yahya foi amigo e companheiro de armas de Afonso Henriques. Pela sua lealdade e coragem recebeu o título de “Dom”, só concedido pelos reis de Portugal em recompensa de grandes serviços, assim como algumas honras e tenências, das quais as mais conhecidas são as das localidades de Unhos, Frielas e Aldeia dos Negros (esta última no concelho de Óbidos). D. Yaia (como seria conhecido) receberia igualmente a alcunha de «O Negro», que transmitiria aos seus descendentes (Preto e Pretto são variações do original) a par de Ibn Yahya.

Muitas inverdades se tem escrito a este respeito, seja confundindo as personagens de Yaish ibn Yahya (nascido entre 1110 e 1120 e falecido em 1196) com seu filho, Yahya ben Yaish Ibn Yahya (1150?-1222). Este último, que Meyer Keyserling, erradamente, faz contemporâneo de Afonso Henriques, é na verdade contemporâneo de D. Sancho I, a quem serve como almoxarife do reino. Judeu riquíssimo, senhor de vastos domínios, tal como seu pai conselheiro do rei, herdará dele o título de «Dom» e a alcunha de «O Negro».

Muitos dizem vir esta alcunha do facto de serem senhores da Aldeia dos Negros, em Óbidos. Não cremos que assim seja. Na verdade mais acreditamos que a alcunha, a exemplo de outras alcunhas, comuns na época (tomemos por exemplo Fernão Peres «Cativo», o poderoso mordomo do reino) adviesse de características particulares, neste caso relacionadas com a cor do vestuário (o vestuário dos cavaleiros cristãos era o brial branco com a cruz, sobre a cota de malha). Enquanto judeu Yaish ibn Yahya, para não usar o símbolo da cruz, vestiria de negro, donde herdaria a alcunha. Mas assim sendo fica por explicar a origem do topónimo «Aldeias dos Negros…

Acreditamos, embora não tenhamos provas documentais para o comprovar, que Yaish ibn Yahya não seria o único judeu a combater ao lado de Afonso Henriques, havendo mesmo uma brigada de combatentes judeus sob as ordens de Yaish. Não deixa de ser sintomático que um dos três embaixadores de Afonso Henriques que vai a Santarém informar Abu Zakariya de que as tréguas do rei dos Portugueses estavam rompidas se chame Martim Mohab (seria Matan Moab?). Lembramos que Moab é o nome bíblico de uma região da Transjordânia que confina com o Mar Morto, e que foi conquistada pelo rei David (havia um poderoso clã judaico conhecido por Pahat-Moab, «governador de Moab», que dizia descender dos antigos delegados do rei David na região).

Se uma brigada de combatentes judeus acompanhasse Yaish ibn Yahya – o que não seria de estranhar, se tivermos em conta que estamos em presença de um príncipe judeu – então todos vestiriam de negro. A Aldeia dos Negros não teria, assim, nada a ver com os Mouros (só por má vontade e desconhecimento se pode classificar como “negro” o povo Amazigh, os Mouros, a única raça branca de África), sendo apenas o nome dado a uma aldeia nas proximidades de Óbidos, “colonizada” pelos guerreiros judeus que seguiam Yaish ibn Yahya e lutavam ao lado dos cristãos, ao lado dos seus irmãos portugueses.

Talvez a História, um dia, faça justiça a todos estes heróis judeus, também eles pais fundadores da pátria portuguesa e que Portugal tão vilmente tratou. Talvez um dia possamos todos admitir corajosamente que o conquistador de Santarém se chamava Yaish ibn Yahya, era um príncipe judeu e uma notável semente do rei David.

David e Golias - Caravaggio

José Galazak