quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
Anusim portugueses: O farol de Amesterdão
Na última década do século XVI e nas primeiras décadas do século XVII algumas centenas de cristãos-novos portugueses (a que se juntaram depois alguns cristãos-novos espanhóis) procuraram Amesterdão para, beneficiando da atmosfera de tolerância religiosa que se vivia nas Províncias Unidas (recém libertas do domínio da coroa espanhola) regressarem à religião dos seus antepassados. Tinha decorrido um século desde a conversão em massa de todos os Judeus portugueses por D. Manuel I, quatro longas gerações, e daqueles que agora queriam regressar ao Judaísmo eram poucos os que conheciam os hábitos litúrgicos e as velhas tradições. Menor era ainda o número dos que conhecia a língua com que D-us falara aos profetas. Mas isso não os desencorajou. A sua comunidade, ao contrário de um propalado mito, nunca foi numerosa, e no auge do seu poder, nos finais do século XVII, eram apenas 2500. Mas sempre foram riquíssimos, poderosos e influentes, e não lhes faltavam meios para alcançar o grande objectivo a que se propunham: o renascimento da antiga e gloriosa Ha’am ha’yehudi portugezit, a «Nação Judaica Portuguesa», ou simplesmente a Ha’umah portugezit, a «Nação Portuguesa», como eles orgulhosamente e patrioticamente se designavam (ainda hoje, passados mais de 400 anos, os seus descendentes se designam como «Comunidade Religiosa dos Israelitas Portugueses», Portugees-Israëlitisch Kerkgenootschap (PIK).
Ansiosos por voltar ao judaísmo e dispostos a reaprender a lei mosaica, contratam o rabbi Mosheh Uri Halevi, um ashkenazi de Emden, na Baixa Saxónia, que exige de imediato a circuncisão de todos os homens… um sacrifício que os Homens da Nação farão para que a sua pequena comunidade possa renascer. O rabbi ficará com a comunidade até 1603, altura em que esta, já integralmente rejudaizada e autónoma, passa a formar os seus próprios rabbis.
A Nação Portuguesa de Amesterdão, apesar de ter estado quase um século proibida de observar a lei hebraica, rapidamente ganhou um excelente domínio do judaísmo rabínico, formando os seus próprios rabbis e os seus intelectuais versados no estudo do Tanakh, tais como Manasseh ben Israel e Isaac Aboab da Fonseca, ou vultos com a dimensão de Baruch Espinosa (Uriel da Costa, apesar de ter um percurso diferente do dos anteriores, também se encontra ligado à Nação Portuguesa de Amesterdão). No seu todo a comunidade era muito activa do ponto de vista religioso e os conhecimentos da tradição judaica eram brilhantes.
Apesar disto a Nação Judaica Portuguesa de Amesterdão desenvolveu características muito próprias, que a tornavam única entre as comunidades judaicas do seu tempo, e que podemos dizer se terá tornado o cunho judaico português entre os Anusim, definidor de um liberalismo que só no século XX encontrará sólidos seguidores no Movimento Reformista Judaico. A particularidade de serem homens e mulheres que voltavam a judaizar ao fim de três ou quatro gerações, imprimia-lhes esse cunho único entre os Judeus do seu tempo.
A Esnoga, a sinagoga portuguesa de Amsterdão
Sabemos hoje, por exemplo, que a circuncisão, enquanto afirmação de aliança entre o homem e D-us, sempre foi uma questão fracturante entre os Judeus Portugueses instalados em Amesterdão, e que boa parte das famílias a recusava. A circuncisão acabaria mesmo perdendo força de lei entre a comunidade, ganhando carga moral e não religiosa. A recusa da mutilação sexual do bebé ao oitavo dia de vida (na cerimónia do brit milah) terá mesmo levado à divisão da congregação dos Judeus Portugueses, a Bet Ya’akov, surgindo uma segunda congregação, a Bet Yisrael (os cristãos-novos espanhóis fundariam uma congregação à parte, a Neveh Shalom). Mas ultrapassada a disputa dentro da comunidade judaica portuguesa, seguramente depois de ter sido institucionalizada a desobrigação de circuncidar os recém-nascidos, as três comunidades sefarditas acabariam por se reunir numa única, criando a poderosa e influente Talmud Torah.
Túmulo de Menasseh ben Israel
Todas as partes podiam reclamar vitória. Os que recusavam a circuncisão viam-na reconhecida como opção pessoal dos pais da criança, e depois do próprio indivíduo ao longo da vida, sem que isso implicasse discriminação ou anátema dentro da comunidade. Os que tinham uma visão mais conservadora e que defendiam a circuncisão acabariam por impor a rígida determinação de que todos aqueles que quisessem ser sepultados no campo santo de Beth Haim (o cemitério judaico-português de Ouderkerk), mesmo que em vida tivessem optado pela não circuncisão, teriam que obrigatoriamente ser circuncidados antes da inumação (havia um mohel para o efeito). Essa tornou-se a única fronteira discriminatória admitida pela Nação Judaica Portuguesa de Amesterdão.
Muitos dos Judeus Portugueses de Amesterdão, antigos cristãos-novos, eram filhos e netos de cristãos-velhos, fruto dos inúmeros e bem documentados casamentos entre as duas comunidades, num esforço de assimilação conforme à legislação manuelina, particularmente pelas famílias nobres portuguesas que, atraídas por vultuosos dotes, emprestavam os seus pergaminhos aos antigos Filhos de Israel (era corrente dizer-se, sem exagero nenhum, que não havia nobre português que não tivesse sangue hebraico) (1).
Estranhamente, podemos avaliar esta realidade através dos judeus ashkenazis holandeses, influenciados social e culturalmente pelos ricos e poderosos sefarditas da Nação Portuguesa. Na verdade as duas comunidades sempre mantiveram relações de grande proximidade, únicas no mundo judeu, frequentando mutuamente as sinagogas, requerendo os serviços dos rabbis disponíveis, sefarditas ou ashkenazis, unindo as famílias pelos laços do matrimónio.
Esta última realidade encontra-se bem retratada no trabalho de D. M. Behar, publicado no Human Genetics (2004) 114:354-365 Contrasting patterns of Y chromosome variation in Ashkenazi Jewish and host non-Jewish European populations. Analisando os cromossomas Y dos Judeus ashkenazis holandeses, é possível identificar uma percentagem do haplogrupo R1b (>25%), único entre as populações ashkenazis da Europa Central e Oriental. Conhecendo hoje a realidade dos casamentos entre os cristãos-novos e os cristãos-velhos portugueses, assim como a realidade dos casamentos entre sefarditas portugueses e Ashkenazis originários da Alemanha e da Polónia no século XVII, os valores do haplogrupo R1b só podem ter tido origem nos sefarditas portugueses que casando com mulheres ashkenazis, acabariam por aderir às respectivas comunidades.
Estes resultados acabam igualmente por nos elucidar sobre a matriz genética dos judeus portugueses de Amesterdão. Não eram apenas «judeus de raça pura» (se é que essa monstruosa expressão faz algum sentido, sobretudo depois de 1945). Eram homens e mulheres, com diferentes graus de sangue hebraico nas veias, que tinham em comum o facto de não se reverem no Cristianismo e de entenderem os valores do Judaísmo (no seu todo religioso, cultural e social) como os valores pelos quais queriam reger as suas vidas. Era afinal, de uma forma indirecta, o retorno ao proselitismo judaico, tão vigoroso no passado, na Hispânia romana, especialmente nas províncias da Bética e da Lusitânia, e só esmagado no século VII pelo feroz anti-semitismo dos reis godos.
Sabemos hoje que os ricos judeus portugueses mantinham relações extra-conjugais com mulheres não judias, normalmente serviçais de classe inferior (a maioria de nacionalidade holandesa ou escandinava). E tão surpreendente era este facto quanto violava quer a rígida lei judaica, quer a própria lei holandesa. Os filhos ilegítimos dos judeus portugueses recebiam apoio financeiro dos pais, que se encarregavam da sua educação, recebendo as raparigas inclusivamente dotes como se fossem filhas legítimas, sendo depois reintroduzidas na Nação Judaica Portuguesa, onde casavam com jovens judeus. E tão grande devia ser o fenómeno das relações extra-conjugais entre judeus e gentias que um grupo de quinze ricos mercadores judeus de Amesterdão criou uma sociedade, denominada Dotar, com o objectivo de apoiar as crianças descendentes dessas relações.
O trabalho de D. M. Behar, confirmando-nos a enorme «pegada sefardita portuguesa» entre os ashkenazis holandeses por via do haplogrupo R1b, mostra-nos igualmente uma percentagem elevadíssima (>10%) do haplogrupo I, característico das populações germânicas. Confirma-nos assim a genética o que desde há muito os documentos e a tradição nos diziam: a Nação Judaica Portuguesa antecipou o Movimento Reformista Judaico em três séculos, seja no casamento entre judeus e mulheres não judias (com a integração dos filhos ilegítimos na Nação Portuguesa), seja na humanidade do seu proselitismo, seja na renúncia à circuncisão dos filhos… um fenómeno tão sensível que só no século XIX teria verdadeiros desenvolvimentos (de salientar a decisão do Movimento Reformista Judaico, em 1892, na «Central Conference of American Rabbis», de abolir o ritual da circuncisão – decisão posteriormente revogada, mas que lançaria a discussão sobre a circuncisão no movimento judaico mundial). Neste campo, como noutros, a Nação Judaica Portuguesa soube encontrar uma solução sábia, uma solução digna de Shlomo ben David.
Liberais, empreendedores, eruditos, orgulhosos do seu recém-adquirido judaísmo, os nossos irmãos de Amesterdão são um modelo e um farol para todos nós, os Anusim portugueses, esta imensa multidão que ficou para trás, encarcerada pelo Catolicismo, todos estes homens e mulheres que agora buscam denodadamente as suas velhas raízes hebraicas…
(1) Hoje esta realidade – fruto da migração interna nos séculos XIX e XX – abarca seguramente o conjunto da população portuguesa, tornando-nos o mais hebraico dos povos europeus. De resto os estudos genéticos assim o comprovam.
José Galazak
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
Sacudindo a pele do medo...
Olhemo-nos corajosamente, todos nós, homens e mulheres de Portugal, de frente, sem os risos e os olhares tolos – quase infantis – com que aprendemos a mirar o mundo para disfarçar a nossa abissal ignorância das coisas, porque tudo tornámos ligeiro em nós. Interroguemo-nos seriamente, como gente adulta: vivemos bem connosco, vivemos bem na nossa pele? O mal estar que nos assalta continuamente é natural? Este jeito infantil de vivermos, sem abraçarmos causas, movidos apenas por um primitivo e animal desejo de sobrevivência, é natural?
Desprezámos há muito o saber, e os homens e as mulheres que amam o saber. Temos o sol e um vasto oceano que nos cerca, e de luz baça e de espuma fizemos a nossa vida colectiva. Queremos todos viver para o sol e para o mar, esquecidos que há mais, muito mais que o saboroso sol e o revigorante mar. As morsas e as focas, deitadas sobre a banha acumulada, também vivem para saborear o sol e o mar… mas elas nada mais têm. Nós somos homens e mulheres, e aprendemos a olhar as coisas, para além do sol que nos aquece e do mar que nos alimenta. Pelo menos deveríamos ter aprendido…
Não nos amamos como povo, nem sabemos sequer o que isso é. Não amamos aquilo que realizámos e que realizamos todos os dias. Não construímos porque preferirmos mil vezes suar ao sol, frente ao mar, do que suar pelo nosso trabalho. Sabedoria, sim temo-la, e em excesso. Procuramo-la todos os dias, não nos livros, mas no fundo das canecas de cerveja. Nós, Portugueses, odiamos livros e mais odiamos quem os lê. E que ninguém diga que não é assim, porque mente. Ler é uma obrigação, a pior de todas, nunca um prazer.
Fomos assim forjados, há 500 anos, quando a Inquisição nos tornou a todos espiões dos homens que liam. Fugimos todos da cultura para fugirmos dos ferros e do fogo. E escondemo-nos todos dentro da nossa pele, a pele do nosso imenso medo. Cristãos-velhos denunciavam cristãos-novos e cristãos-velhos, por invejas ou por ódios. Cristãos-novos apressavam-se a denunciar outros cristãos-novos, antes que alguém os denunciasse. E os homens nunca mais foram livres, e todos nos tornámos polícias de todos, e os livros foram todos queimados, e as velas nunca mais se acenderam à sexta-feira, e as mãos e os corpos deixaram de se lavar. A brutalidade instalava-se na velha Luzidanya.
Somos nós, Portugueses, estranhíssimas criaturas. Dentro de nós habitam velhos-cristãos e velhos-judeus. Muitos, a esmagadora maioria, não conhece a origem do seu sangue, e é hoje cristã de corpo e alma, porque pensa que sempre assim foi. Outros, incomodados na sua pele, passam indiferentes diante das igrejas e das capelas, sem saber porquê. Ali foram baptizados, ali casaram, ali baptizaram os filhos. Mas dentro deles não se acende nenhuma Luz, porque aquela não é a sua casa. Eles não sabem, mas sentem. Ainda há medo na sua pele. Ainda não reencontraram o seu caminho. Mas começam a dar os seus primeiros passos. Logo estarão em movimento.
Há mais de dois milhões de portugueses que trazem nas suas veias o sangue de Moisés. São esses os números que a genética nos dá. Do sangue misturado que tanto assustava a Inquisição, os números são muito mais altos: 37% de Portugueses, 3,7 milhões que trazem sangue judeu nas suas veias. Não há nada de igual na Europa. Só a Espanha tem números semelhantes, mas a Espanha tem uma longa história de conversões voluntárias, e a maioria são Meshumadim (heréticos que voluntariamente renunciaram ao Judaísmo), não Anusim como os Portugueses, baptizados à força por D. Manuel I e impedidos de partir.
Estes homens e estas mulheres que lutam dentro de si, divididos entre a cultura religiosa em que nasceram mas que pouco lhes diz e outra, que ainda mal conhecem mas que sentem como sua, são Portugueses de corpo e alma. Nunca foram outra coisa. Nunca serão outra coisa. Não querem ser outra coisa. Reencontrarão um dia o seu caminho, tranquilamente, para que Portugal se possa reencontrar também. Terão sempre o exemplo dos seus irmãos que partiram para Amsterdão, e aprenderão a recriar o seu próprio Judaísmo, um Judaísmo moderno, reformista. Jerusalém será sempre o seu farol. Mas será o judaísmo americano, reformista e aberto ao século XXI, que eles irão abraçar. Sempre Portugueses. Sempre amando e vivendo na terra de Portugal…
Desprezámos há muito o saber, e os homens e as mulheres que amam o saber. Temos o sol e um vasto oceano que nos cerca, e de luz baça e de espuma fizemos a nossa vida colectiva. Queremos todos viver para o sol e para o mar, esquecidos que há mais, muito mais que o saboroso sol e o revigorante mar. As morsas e as focas, deitadas sobre a banha acumulada, também vivem para saborear o sol e o mar… mas elas nada mais têm. Nós somos homens e mulheres, e aprendemos a olhar as coisas, para além do sol que nos aquece e do mar que nos alimenta. Pelo menos deveríamos ter aprendido…
Não nos amamos como povo, nem sabemos sequer o que isso é. Não amamos aquilo que realizámos e que realizamos todos os dias. Não construímos porque preferirmos mil vezes suar ao sol, frente ao mar, do que suar pelo nosso trabalho. Sabedoria, sim temo-la, e em excesso. Procuramo-la todos os dias, não nos livros, mas no fundo das canecas de cerveja. Nós, Portugueses, odiamos livros e mais odiamos quem os lê. E que ninguém diga que não é assim, porque mente. Ler é uma obrigação, a pior de todas, nunca um prazer.
Fomos assim forjados, há 500 anos, quando a Inquisição nos tornou a todos espiões dos homens que liam. Fugimos todos da cultura para fugirmos dos ferros e do fogo. E escondemo-nos todos dentro da nossa pele, a pele do nosso imenso medo. Cristãos-velhos denunciavam cristãos-novos e cristãos-velhos, por invejas ou por ódios. Cristãos-novos apressavam-se a denunciar outros cristãos-novos, antes que alguém os denunciasse. E os homens nunca mais foram livres, e todos nos tornámos polícias de todos, e os livros foram todos queimados, e as velas nunca mais se acenderam à sexta-feira, e as mãos e os corpos deixaram de se lavar. A brutalidade instalava-se na velha Luzidanya.
Somos nós, Portugueses, estranhíssimas criaturas. Dentro de nós habitam velhos-cristãos e velhos-judeus. Muitos, a esmagadora maioria, não conhece a origem do seu sangue, e é hoje cristã de corpo e alma, porque pensa que sempre assim foi. Outros, incomodados na sua pele, passam indiferentes diante das igrejas e das capelas, sem saber porquê. Ali foram baptizados, ali casaram, ali baptizaram os filhos. Mas dentro deles não se acende nenhuma Luz, porque aquela não é a sua casa. Eles não sabem, mas sentem. Ainda há medo na sua pele. Ainda não reencontraram o seu caminho. Mas começam a dar os seus primeiros passos. Logo estarão em movimento.
Há mais de dois milhões de portugueses que trazem nas suas veias o sangue de Moisés. São esses os números que a genética nos dá. Do sangue misturado que tanto assustava a Inquisição, os números são muito mais altos: 37% de Portugueses, 3,7 milhões que trazem sangue judeu nas suas veias. Não há nada de igual na Europa. Só a Espanha tem números semelhantes, mas a Espanha tem uma longa história de conversões voluntárias, e a maioria são Meshumadim (heréticos que voluntariamente renunciaram ao Judaísmo), não Anusim como os Portugueses, baptizados à força por D. Manuel I e impedidos de partir.
Estes homens e estas mulheres que lutam dentro de si, divididos entre a cultura religiosa em que nasceram mas que pouco lhes diz e outra, que ainda mal conhecem mas que sentem como sua, são Portugueses de corpo e alma. Nunca foram outra coisa. Nunca serão outra coisa. Não querem ser outra coisa. Reencontrarão um dia o seu caminho, tranquilamente, para que Portugal se possa reencontrar também. Terão sempre o exemplo dos seus irmãos que partiram para Amsterdão, e aprenderão a recriar o seu próprio Judaísmo, um Judaísmo moderno, reformista. Jerusalém será sempre o seu farol. Mas será o judaísmo americano, reformista e aberto ao século XXI, que eles irão abraçar. Sempre Portugueses. Sempre amando e vivendo na terra de Portugal…
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