quarta-feira, 19 de maio de 2010

Sisnando Davides: A vida aventurosa de um judeu português do século XI

José Galazak

Em 1071 o duque de Portucale, Nuno Mendes, herdeiro prestigiado de uma poderosa dinastia afrontada pela política centralizadora dos reis de Leão e Castela, sentindo que os herdeiros de Fernando Magno, divididos, estão à sua altura, rebela-se contra o rei Garcia da Galiza. Este avança com todas as suas forças e dá-lhe combate no lugar de Pedroso, a norte de Braga. O resultado não podia ser mais desastroso: o duque é derrotado e morto, os seus barões desbaratados e o ducado – depois de dois séculos de uma gloriosa existência – é extinto, revertendo os seus bens para o património da coroa.


Deixou Nuno Mendes uma filha, Loba Nunes, sua única herdeira, casada com o poderoso conde de Coimbra, que governava um vastíssimo território que tinha o Douro por fronteira setentrional. Poderia ter o conde de Coimbra, fruto das suas excelentes relações com o poder real, ter reclamado os bens e eventualmente o poder dos duques de Portucale, mas a verdade é que não há nada de comum entre os barões que seguem Nuno Mendes e os cavaleiros que seguem o conde de Coimbra.

Os primeiros são os orgulhosos descendentes dos cavaleiros que acompanharam Vímara Peres em 868 na conquista de Portucale (Porto). São homens que tinham vindo recuperar a antiga organização territorial herdada da época visigótica (estaremos mesmo diante dos herdeiros dos nobres do antigo Regnum Suevorum, conquistado pelos Godos em 585 mas que tinham continuado a governar as suas terras de sempre, só abandonando as suas villae aquando da invasão de 711). Nunca conheceram a aculturação islâmica e os Mouros com que lidavam eram apenas aqueles que combatiam quando acompanhavam o rei nas suas algaras por terras do Andalus.

Os homens que seguem o poderoso conde de Coimbra são cavaleiros vilãos, moçárabes, Cristãos cuja cultura é pesadamente árabe, que falam a língua árabe e cuja língua vernácula, tendo por base o latim, se viu enriquecida por milhares de vocábulos árabes. A influência destes homens no futuro será tal que a língua que falam será a base da língua portuguesa. Um abismo separa os homens que vivem a norte do Douro dos que vivem a sul, e o conde de Coimbra, mesmo ligado aos duques de Portucale pelos laços do matrimónio, sabe que o seu lugar é no sul, entre os homens do sul, e não no norte.


O poderoso conde de Coimbra é uma das personalidades mais fascinantes do seu tempo. Os seus pais chamavam-se David e Susana, nomes de origem hebraica e que no século XI eram quase exclusivamente utilizados por Judeus, o que faz supor que Sisnando Davides fosse judeu ou filho de judeus. Essa é de resto a opinião de José Hermano Saraiva.

Uma tradição coeva diz-nos que Sisnando Davides era natural de Tentúgal, pequena aldeia próximo de Coimbra, e que na sua infância teria sido capturado numa razia de Mouros, tendo sido levado para Sevilha. Ter-se-ia convertido então ao islamismo, o que lhe abriu uma porta de oportunidades que ele soube aproveitar como ninguém, atingindo o cargo de vizir do rei de Sevilha. Não era invulgar que assim acontecesse. Na verdade por esta altura o judeu Samuel ibn Nagrela (Shmuel HaLevi ben Yosef HaNagid), poeta e talmudista, ocupava o posto de vizir e chefe dos exércitos do reino de Granada (guardaria este último e importante cargo desde 1038 até à sua morte, em 1055 ou 1056). E na taifa de Saragoça o também judeu Yekoutiel ben Isaac era ministro e conselheiro do rei Ahmad ben Soulayman al-Mouqtadir.


Não há informações concretas sobre a primeira metade da vida de Sisnando Davides. Mas o facto de ter feito carreira em Sevilha, na corte do rei Al-Mutadid, faz-nos acreditar que teria «viajado» para o sul entre os anos 1027 e 1034, período em que Sevilha controlou a enorme taifa de Batalyaws (Badajoz), que incluía as cidades de Lamego, Viseu, Coimbra, Santarém e Lisboa.

A análise dos factos leva-nos a duvidar da versão oficial de que Sisnando Davides foi capturado enquanto jovem na sua aldeia natal de Tentúgal, numa razia de Mouros, pois nessa altura praticamente todo o Al-Gharb (o ocidente peninsular a sul do Douro) voltara a estar nas mãos dos Muçulmanos. Por esta altura Tentúgal, tal como Coimbra, eram localidades sob controlo muçulmano. A deslocação de Sisnando Davides para Sevilha ter-se-ia ficado a dever a outros motivos (a normal deslocação de pessoas dentro do mundo muçulmano), não a uma captura durante uma razia que não faria sentido dentro da conjuntura atrás indicada.


Se quisermos traçar um retrato fiável de Sisnando Davides não podemos dissociar o seu percurso de vida do de Samuel ibn Nagrela, tanto mais que ambos alcançaram os lugares mais altos dentro da administração dos reinos das taifas, tendo de ser os melhores entre os melhores, para vencer o preconceito religioso. Conhecemos bem Ibn Nagrela, um homem cultíssimo, que teria recebido o essencial da sua educação de seu pai, completando depois a sua formação com rabinos de Córdova, os mais conceituados. Não temos razão para duvidar de que David, o pai de Sisnando, terá preparado o seu filho da mesma maneira, talvez ainda em Tentúgal ou Coimbra. Viajando depois para Córdova (onde a tradição também nos diz ter sido educado) e Sevilha, aí terá o jovem Sisnando completado a sua formação. E deste modo ganha mais força a nossa tese de que Sisnando era um judeu de Coimbra/Tentúgal.

Não conhecemos as razões que terão levado Sisnando Davides a trocar Sevilha pela corte de Fernando Magno, em Leão, mas não deverão ser estranhas ao seu orgulho e à sua fortíssima personalidade. Quando em 1063 ou 1064 o rei decide reconquistar a cidade de Coimbra (fora conquistada em 878 e perdida em 987, na famosa expedição de Almançor), uma tradição coeva diz-nos que é Sisnando Davides quem está por detrás do projecto, convencendo o rei a realizá-lo. Verdade ou não, o que é certo é que o rei participa directamente na conquista da cidade, e com ele estão os seus filhos, a sua corte e muitos eclesiásticos, o que prova a importância que é dada então à cidade do Mondego.


A cidade é conquistada depois de um longo cerco de seis meses, e a Sisnando Davides, que terá tido um papel de grande destaque na conquista, é entregue não somente a sua administração, mas a administração de todo o território entre o Douro e o Mondego, o antigo condado de Coimbra, agora restaurado. Sisnando Davides, o judeu, torna-se um dos homens mais poderosos do reino de Fernando Magno.

A tradição indica-nos que, do ponto de vista religioso, Sisnando Davides é um moçárabe. E é bem possível que este homem, nascido de pais judeus e tendo recebido uma educação judaica, se tenha definido toda a sua vida como cristão. Experiente, sagaz, ele conhece bem a natureza humana. Homem de poder, amigo do poder, não nos custa admitir que publicamente se tenha convertido para ganhar a confiança de Fernando Magno e para manter a lealdade dos moçárabes de Coimbra (seria deste modo o primeiro cripto-judeu português). A opção mostrou-se correcta, pois governaria como um rei todo o centro de Portugal, até ao último dos seus dias, em 25 de Agosto de 1091.

As suas excelentes qualidades de governante farão com que o rei Afonso VI de Leão e Castela o nomeiem primeiro governador de Toledo, depois da conquista desta cidade em 1085, para implementar a sua política de tolerância entre as diversas comunidades que viviam na cidade (moçárabes, muçulmanos e judeus). Mas Sisnando era um homem do sul, e a sua personalidade fortíssima chocou contra o arcebispo Bernardo de Sedirac que, do ponto de vista religioso, queria impor a todos os Cristãos o rito romano em substituição do moçárabe, tal como ficara definido no Concílio de Burgos. Seis meses depois o «rei» Sisnando Davides estava de regresso a Coimbra.

Governando como um rei até ao último dos seus dias, e não tendo um filho para lhe suceder, Sisnando tentou impor no “trono condal” o seu genro. Mas a monarquia leonesa desenvolvia uma política unificadora e punha fim às antigas hereditariedades condais. O antigo condado/ducado de Portucale tinha desaparecido em 1071. O condado de Coimbra desaparecia em 1091. Da junção dos dois, da união do condado do norte com o do sul iria nascer o novo Condado Portucalense, com capital em Coimbra. Mas essas já são velhas histórias da nossa História…

domingo, 28 de fevereiro de 2010

A pele do medo

José Galazak

Sim, em verdade vos digo, não somos quem julgamos ser!
Arrancai as veias nos vossos braços falecidos,
E olhai, olhai bem esse sangue português que aí se arrasta.
Nunca haveis estranhado a resignação da nossa alma?
Nunca haveis estranhado a nebulosidade dos nossos passos?
Nunca haveis estranhado a inconstância da nossa fé?
Ah, vejo-nos através do tempo, caminhando na raiz do abismo,
Todos nós, tristes homens e mulheres de Portugal;
E abraçados, chorando do vento funesto que varre a nossa terra,
Continuamos todos a amordaçar o grito libertador do nosso sangue,
Temerosos uns do fogo com que vieram ao amor de Cristo,
Temerosos outros da vingança divina pela impiedade das suas almas.
Esta é a amarga dor com que nos proibimos todos à alegria do Sol!

Foi no dia de todas as fúrias, quando Lisboa se ensanguinhou,
Que se perderam os povos de Portugal aos olhos de Deus.
Punhos brutais tinham arrastado multidões inumeráveis até Cristo,
E nas igrejas de Lisboa acotovelavam-se novos e velhos Cristãos,
E juntos rezavam, contra a peste, pela chuva e pelo pão,
E corriam ávidos por um sinal os olhos ignorantes dos crentes;
E quando o rosto de Cristo se iluminou na capela dominicana,
Logo gritaram os corações crédulos, louvando o lúcido milagre.

Mas era um tempo em que o nosso pensamento ainda voava,
E a Igreja ainda não tinha castrado todos os seus carneiros,
E um de nós, velho português e velho judeu,
Recém-chegado à família de Cristo pela aguda espada,
Murmurou que a santa luz era apenas a centelha de uma candeia.
Ah, que foste tu dizer, homem?
Porque não guardaste para ti a mentira que te davam?
Não sabias que os Cristãos juraram terminar a raça de Cristo,
E a multidão só queria uma desculpa para soltar os demónios?
Arrastaram-te pelos cabelos para fora da capela, lincharam-te
E queimaram depois o teu corpo no Rossio, celebrando a morte.
Eras menos que nada, eras apenas um judeu,
E ainda por cima um judeu com a bolsa gorda de prata!
Maldito! Onde arranjaste todo esse dinheiro?
Comedimento, disciplina, amor ao trabalho, inquieta resignação?
Mentira! Fizeste um pacto com Belzebu, isso sim!

E no sagrado púlpito, indiferentes ao olhar reprovador de Cristo,
Deixando brilhar alegremente as suas piedosas garras,
Crocitavam os corvos, alimentando o ódio ignorante da multidão.
E foi a nossa gente perseguida, torturada e entregue viva ao fogo;
E foram as nossas mulheres e as nossas filhas violadas;
E foram os nossos meninos arrancados do berço e esmagados
Contra as paredes e os muros até Deus os receber;
E deste crime primordial nascemos nós, desassossegados Cristãos;
E deste arranco cruel nasceu a saudade que nos devora;
E desta verdade nasceu a mentira das nossas vidas.

Na forja da Igreja martelaram os robustos ferreiros a História,
Para que fossem apagadas todas as estradas
Que cruzavam com a estrada de Cristo,
E para que o manto do esquecimento
Escondesse o rasto dos homens de Sefarad,
Pois todos sabiam que os Judeus tinham ficado em Portugal,
Os que tinham fundas raízes na velha Lusitânia,
E os outros, as multidões que tinham fugido dos catolicíssimos reis
E que na pátria de Yaish ibn Yahya e de Isaac Abravanel
Tinham procurado salvação para as suas vidas.

Ah, mas a velha sabedoria dos reis de Borgonha
E dos primeiros reis de Avis tinha sido sacrificada no altar do poder,
E nesta terra não havia príncipes perfeitos nem reis venturosos;
E foram arrancados os cabedais e a fé aos homens de Judá,
E foram arrancados os filhos às mães, e mergulhados
Nas pias baptismais, e levados por estradas sem fim
Onde se criaram longe, entre gente piedosa,
Para que um dia também eles fossem bons e piedosos Cristãos.

E nas cidades morriam os Judeus e as judiarias,
E as sinagogas eram primeiro vandalizadas e depois santificadas,
E os bispos a tudo assistiam, debruçados nos seus ventres ,
Felizes pastores que viam agora crescer os rebanhos e as riquezas;
Mas como ainda houvesse resistentes na espessura das noites,
Vieram homens santos para inquirir do desassossego das almas,
E com a bênção do rei e do bispo de Roma lavrou-se a terra,
E houve fartas searas de ódio, sangue, tortura e morte,
E a denúncia palúdica tornou-se o virtuoso dever do crente,
E o povo vinha domingueiro ver as fogueiras onde os judeus ardiam,
E assim se divertiam os Goyim, medindo a dor dos Sefaradim.

E a mais feroz das maldições foi devorando a alma portuguesa,
E fomos queimando os livros e os homens que os liam,
E por não podermos dizer fomos desprezando a alegria de pensar;
E passaram dias, e passaram anos, e passaram séculos,
E a brutalidade era agora a massa dos nossos corpos,
E ferozes patrulheiros da Igreja de Cristo, corríamos
Ávidos por encontrar quem não cresse,
Ávidos por aliviar por alguns instantes o vazio das nossas vidas.

E assim, com as lágrimas e o sangue, se tornou a terra estéril,
E com a terra estéril foram os homens ficando estéreis também,
E raros gigantes nasceram depois neste pântano ocidental,
E mesmo esses foram sempre perseguidos,
Pela castradora inveja dos homens e pelo negrume do Destino.

Mas nenhuma ditadura é eterna, nem mesmo a ditadura da fé,
E no lúcido País das Serpentes começam agora alguns de nós,
Os Goyehudim, gentios orgulhosos do seu sangue judeu,
Judeus orgulhosos do seu sangue gentio,
Corajosamente a largar a velha pele do medo,
Para que no futuro todos nos possamos abraçar de novo,
Cristãos e Judeus, uma só lusitanidade, dois irmãos rindo ao Sol.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Viajaram os Filhos de Dan até Portugal?

Rufius Festus Avienus, poeta latino, escrevendo no século IV mas apoiado em velho roteiros fenícios e gregos com quase mil anos – «escritos recônditos» e «antigas páginas», nas suas próprias palavras – relata-nos no seu poema Ora Maritima que a região ocidental da Península Ibérica, antes chamada Oestrymnis, se chamava agora Ophiussa, e que o seu nome lhe vinha de uma grande invasão de serpentes que fizera fugir os antigos habitantes da terra. Os seus actuais habitantes chamavam-se Sefes e Cempsos (Saefes e Cempsi), e habitavam as colinas e os campos de Ophiussa.

Este é o mito fundador de Portugal, desde sempre desprezado pelos historiadores, mas agora olhado de novo, à luz dos últimos mapas genéticos das populações peninsulares, onde os pergaminhos celtas das populações da Galiza e do Norte de Portugal são definitivamente rasgados e substituídos por novos e inimagináveis pergaminhos berberes (Amazighs), de populações aqui instaladas desde o Neolítico e que nada têm a ver com os invasores Mouros de 711… populações estabelecidas em Oestrymnis, na Estremadura portuguesa, e daqui expulsas por uma “invasão de serpentes” que fez instalar novas populações, Sefes e Cempsos.

Durante decénios, aceitando sem discutir a Teoria das Invasões de Bosch Gispera, fizemos destas populações Celtas vindos do centro da Europa, negando as evidências arqueológicas que apontavam noutra direcção, negando Avieno que claramente nos dizia que os Cempsos, agora no ocidente peninsular, tinham o seu berço nas margens do Lago Ligustino, sendo irmãos germanos dos Tartéssios. Os fenícios tinham-nos preterido a favor destes últimos, e combatidos por uns e por outros, tinham os Cempsos partido para noroeste, arrastando na sua passagem uma multidão de povos menores.

A sua passagem como força invasora pelas planícies do Alentejo encontra-se arqueologicamente documentada, seja pelo desaparecimento súbito e inexplicável de povoados na Serra de Huelva e nas duas margens do Guadiana (o povoado de Passo Alto, na margem direita do Chança, é um caso paradigmático), seja pela alteração do modelo de povoamento no Alentejo Central, com as populações abandonando as suas quintas na planície, sem preocupações defensivas, e recuperando ou construíndo grandes povoados fortificados, no cimo dos montes, como se pode comprovar nos povoados da Serra d’ Ossa. Fundam uma primeira cidade, Dipo, que sobrevive até à epoca romana e que muito acreditam estar no subsolo de Évoramonte. E avançando para oeste e para noroeste fundam sucessivamente Beuipo (Alcácer do Sal), Olisipo (Lisboa) e Colipo (Leiria), avançando até às margens do Mondego. A terminação em “-ipo” das povoações que fundaram (os topónimos que o tempo não devorou), não nos ilude quanto à sua proveniência, pois a esmagadora maioria dos povoados em “-ipo” encontra-se a sul do Guadalquivir.

Quanto aos Sefes, nada sabemos... tirando o facto de serem exógenos (os antigos habitantes, os Estrímnios (Oestrymni), foram expulsos e a terra ficou vazia, diz-nos Avieno). Não sabemos se os Sefes acompanharam os Cempsos no seu êxodo desde o Lago Ligustino ou se aqui chegaram na mesma altura, sendo seus aliados na conquista do país. Tudo nos leva a apostar na segunda hipótese, pois Avieno diz-nos que os vizinhos dos Cinetas eram os Cempsos, estando pois estes últimos a sul dos Sefes e, sendo mais numerosos – eventualmente pelo número de povos que arrastaram – tenham acabado por exercer alguma hegemonia política, ao ponto de serem eles a nominar os novos povoados e, alcançando o Mondego, “cercarem” pelo norte e pelo sul os Sefes.

Menos numerosos, os Sefes estabeleceram-se na Baixa Estremadura, onde partilharam os campos e as colinas com a grande coligação dos Cempsos, mas sem se unirem ou submeterem, pois Avieno identifica-os claramente. De onde vieram? De leste claramente não vieram, pois aí estão instalados os povos que a História conhecerá por Lusitanos. Do norte também não é provável, pois esse movimento impediria o êxodo dos Estrímnios aquando da “Invasão das Serpentes”. Resta-nos a via marítima, o largo oceano onde o Tejo se derrama…

O mar era uma velha e familiar estrada, que sempre trouxera gente ao ocidente peninsular. Por ele tinham viajado os pioneiros neolíticos vindos do Mediterrâneo Oriental. Por ele tinham viajado os homens e as ideias que, da longínqua Bretanha, tornaram possível o fenómeno megalítico no Alentejo Central. Por ele tinham viajado os homens e as mulheres que trouxeram o Campaniforme até Oestrymnis, desde a foz do Reno. E era em Oestrymnis, já na Era do Bronze, que se encontravam os comerciantes do nebuloso norte com os comerciantes do luminoso sul. Há cinco mil anos que o grande oceano era navegado, e há cinco mil anos que Oestrymnis era, no Ocidente, uma das principais razões porque os homens desafiavam esse grande oceano.

Perante isto, não nos custa admitir terem os Sefes alcançado Oestrymnis por mar. Teriam chegado na mesma altura em que os Cempsos, uns por mar, outros por terra. Podemos mesmo, com alguma imaginação, reconstituir os primeiros passos no novo país onde escolhiam viver. Unidos por um objectivo comum e por uma bandeira comum (a serpente) teriam os dois povos pactuado a divisão da terra. Os barcos dos Sefes, subindo o rio Tejo – mais largo do que hoje – muito para além de Santarém, transportavam os Cempsos da margem esquerda para a margem direita, derramando tropas e abrindo novas frentes de combate que rompiam as defesas dos Estrímnios. Era a grande «invasão das serpentes», que vinha pôr fim à civilização estrímnia e marcar uma nova era. Nascia o «País das Serpentes», que os Gregos, informados da lenda, traduziriam depois para Ophiussa.

Mas quem eram afinal estes Sefes que partilhavam com os Cempsos as colinas e os campos de Ophiussa? Qual a sua proveniência? Vinham da Europa do Norte ou do Mediterrâneo? Temos razões para acreditar virem do Mediterrâneo, acompanhando a colonização fenícia do Mediterrâneo ocidental, pois o surgimento quase simultâneo dos dois povos nas costas ocidentais da península não pode ser simples coincidência.

O etnónimo “Sefes” tem sido motivo de grande controvérsia. Escavando hipotéticas raízes célticas, ainda embebido pela «Teoria das Invasões» de Bosch-Gimpera, conseguira S. Lambrino ligar os Sefes, embora sem grande convicção, com o topónimo Sefulae do nordeste da Gália. Mais nos parece a nós, olhando o mito da Invasão das Serpentes, que é no hebraico tsefah «serpente» que devemos procurar a origem do etnónimo “Sefes”. Entre as doze tribos de Israel a serpente era o eterno símbolo dos Filhos de Dan, que lhes fora transmitido por Jacob no seu leito de morte:

Dan será a serpente junto ao caminho, uma víbora junto à vereda, que morde os calcanhares do cavalo e faz cair o seu cavaleiro por detrás.

Génesis, 46:17

De regresso a Canaan depois do êxodo egípcio, as sortes lançadas por Josué foram aziagas para os Filhos de Dan na distribuição dos territórios pelas doze tribos de Israel.

Saiu, porém, pequeno o termo aos filhos de Dan; pelo que subiram os filhos de Dan e pelejaram contra Leshem; e a tomaram, e a feriram ao fio da espada, e a possuíram e habitaram nela: e a Leshem chamaram Dan, conforme ao nome de Dan, seu pai.

Josué, 19:47

A divisão da terra de Canaan entre as doze tribos de Israel não significou que os territórios fossem rigorosos. Na verdade a terra não se encontrava vazia, e os Filhos de Israel, para garantirem a posse da terra que lhes coubera em sorte, tinham primeiro de conquistá-la. Belicosos, fortalecidos na guerra contra os Filisteus (que os historiadores dizem ser seus irmãos de raça) os Filhos de Dan partiram à conquista da cidade de Leshem, situada no extremo norte da terra de Canaan, no território tradicionalmente atribuído à tribo de Neftali. Esse pormenor “jurídico” não impediu a sua conquista pelos Dan. Sendo os habitantes de Leshem Sidónios (Fenícios), não nos custa admitir terem os Filhos de Dan garantido pela força das armas, também contra os Fenícios, o controlo militar de um largo “corredor” que permitia o acesso de Leshem/Dan ao mar. Ficaria este corredor entre o território de Asher e a Fenícia.

Desenvolveu-se uma relação íntima entre os Filhos de Dan e os Fenícios, ao ponto de os casamentos entre homens e mulheres dos dois povos se ter vulgarizado (o celebrado artífice que Hiram, o rei de Tiro, envia a Salomão para o ajudar na construção do templo é filho de um fenício e de uma mulher judia da tribo de Dan). Influenciados pelos Fenícios os Filhos de Dan apaixonam-se pelo mar e pelos barcos. Compreende-se assim o lamento de Débora, a profetiza:

Gilead se ficou dalém do Jordão, e Dan, por que se deteve em navios?

Juízes, 5:17

Sabemos que os Filhos de David combateram ao lado do rei David, em Hebron, onde forneceram vinte e oito mil e seiscentos combatentes, e quando David era já idoso «e cheio de dias», na altura em que fez Salomão, seu filho, rei de Israel, os Dan ainda viviam em Canaan, pois um dos seus príncipes, Azarel, está presente na cerimónia de coroação. Reinou Salomão 40 anos, e sucede-lhe seu filho, Roboão, que não consegue manter a unidade do reino, tendo apenas a seu lado as tribos de Judá e Benjamim. Por esta altura Dan faz parte das dez tribos rebeldes que coroam Joroboão rei de Israel, no norte, oposto a Joroão, em Judá, no Sul.

Em Crónicas I, contudo, na genealogia dos povos, a tribo de Dan já não figura entre as doze tribos, sendo substituída pela tribo de Levi. Em fins do século IX, princípios do século VIII, os Filhos de Dan não voltam a figurar nos livros dos profetas, pois eles, os mais idólatras de todos, desistiram da nação de Israel. E em 722 a. EC, quando os Assírios, sob o comando de Salmanaser V e depois Sargão II conquistam o reino do norte e destroem a sua capital, Samaria, deportando todos os Israelitas para a Mesopotâmia, os Filhos de Dan já tinham partido.

Acreditamos que terá sido durante o reinado de Hazael, rei de Aram-Damasco (842-805 a. EC) que os Filhos de Dan, habitando a mais setentrional das cidades de Israel, sempre sujeitos aos ataques e às pilhagens do Arameus, comprimidos num minúsculo território que não oferecia segurança para as populações, terão procurado protecção no país dos cedros.

O rei de Tiro era, por esta altura, Pummayyaton (o conhecido Pigmalião da mitologia grega), que reinaria entre os anos de 831-785 a. EC. Era lendária a índole guerreira dos Filhos de Dan, e a Pigmalião não interessava ter nas suas fronteiras (eventualmente dentro do seu país) gente tão perigosa. Havia que fazê-los partir, e o mar apresentava-se como a melhor solução. Não deixa de ser significativo ser exactamente no reinado de Pigmalião que Tiro se lança decisivamente na colonização do Mediterrâneo ocidental (Cartago, a mais famosa das suas colónias, é fundada – segundo a lenda – em 825 a. EC, pela irmã de Pigmalião, Dido).

A denominada Pedra de Nora, encontrada na Sardenha, com uma inscrição fenícia, dá-nos a conhecer alguns dos pormenores dessa colonização do Mediterrâneo ocidental, que esteve longe de ser pacífica, como durante muito tempo foi admitida. Por essa inscrição, onde aparece o nome de Pummayyaton sob o hipocorístico Pummay, ficamos a saber que o general fenício

Milkaton, filho de Shubna, general do rei Pummay, combateu
com o seu exército os Sardenhos em Tarshish, vencendo-os
e alcançando a paz.

Havendo hoje alguma unanimidade entre arqueólogos e historiadores quanto à fundação quase simultânea das colónias fenícias no Ocidente, é lícito supor que a realidade que encontramos na Sardenha (um poderoso exército fenício vencendo os autóctones e conquistando o país) se tenha repetido noutras paragens onde Tiro decidira fundar as suas colónias, e onde as relações com os autóctones se revelavam conflituosas.

Em Cartago diz-nos a lenda que Dido, tendo partido de Tiro em 825 a. EC, se estabeleceu primeiro numa ilha, fortificando-a, e que durante onze longos anos Fenícios e Líbios se combateram, até a paz ser por fim alcançada e Dido obter permissão para fundar Cartago, em 814 a. EC. O estabelecimento no sul da Península Ibérica esteve igualmente longe de ser pacífico, e Gadir, a celebrada colónia ibérica, numa ilha, foi segundo Estrabão uma terceira escolha, depois de verem goradas as anteriores tentativas, em Onuba e em Sexi, onde seguramente terão sido combatidos pelas populações locais.

Mesmo em Tartessos, onde a colonização fenícia foi intensa, com Fenícios e Tartéssios beneficiando mutuamente da estreita relação, a rivalidade entre os dois povos terá sempre existido. Os autores latinos Justino e Macróbio descrevem inclusivamente algumas guerras entre os Tartéssios e os Fenícios, especialmente os de Gadir. Diz-nos Justino que os povos que viviam perto de Gadir (i. é, os Tartéssios) tinham muita inveja da nova cidade que nascia, e que atacaram os Gaditanos, que pediram ajuda aos Cartagineses, que vieram socorrê-los, acabando por conquistar uma grande parte da Hispânia.

É pouco provável que por esta altura Cartago, também acabada de ser fundada, tivesse condições para, por si só, socorrer Gadir. Mas se equacionarmos a presença de mercenários a soldo de Cartago, eventualmente numa altura em que já reinava a paz entre Fenícios e Líbios, então não nos custa admitir a transferência desses mercenários do Norte de África para a Península Ibérica.

Através da realidade púnica conhecemos bem a organização e a estrutura militar dos exércitos fenícios. Em Cartago os mercenários foram sempre preponderantes. Recrutados entre os Líbios, os Gauleses, os Iberos, os Celtiberos e os Lusitanos, com eles combateu Cartago na Primeira e na Segunda Guerras Púnicas. Com eles conquistou Amílcar Barca o seu império ibérico. Com eles marchou Aníbal Barca pelos Alpes, com os seus elefantes de guerra, para desafiar Roma na sua própria casa.

Quando Pigmalião se lança na colonização do Mediterrâneo Ocidental, nas suas frotas seguem centenas de navios, uns transportando os colonos com as suas famílias, os outros transportando os homens de armas que irão proteger as novas colónias. Temos razões para crer que esses homens de armas serão na sua maioria mercenários, soldados de fortuna que seguem acompanhados das suas famílias... gente que os azares da guerra tinha feito convergir ao reino de Pigmalião. São os Filhos de Dan, a mesma raça de guerreiros que gerara Sansão, o maior de todos os heróis hebreus, mas que, isolada no norte e diante da fúria de Hazael – que recriava o império arameu devorando a terra de Israel – se sentia incapaz de garantir a segurança das suas famílias. Emigrava agora, acompanhando os colonos fenícios, para sempre se perdendo a sua memória entre os Filhos de Israel.

Acreditamos que a última guerra guerra travada pelos Filhos de Dan por conta dos Fenícios tenha sido exactamente a que Justino nos descreve, e que os opõe a um dos povos tartéssios (que só podem ser os Cempsos, pois de outro modo não se compreenderia o seu êxodo). Derrotados estes pelos exércitos mercenários dos Fenícios, expulsos da grande ilha de Cartare, na foz do rio Guadalquivir (do que resultou a rápida ascenção da cidade de Tartessos, eventualmente neutra durante o conflito, e por isso escolhida como interlocutora privilegiada), os Filhos de Dan resolvem instalar-se por sua conta. Acabarão por escolher o ocidente peninsular, que conquistarão, lutando desta vez ao lado dos homens que combateram.

Os viajantes gregos guardarão para o futuro o nome que dão a si mesmos – Sefes, «as Serpentes» – porque assim os designara o pai de Dan, Jacob, mas também porque a serpente era, desde Moisés, a imagem totémica dos Filhos de Israel, o único ídolo admitido por D-us ao povo eleito.

E disse o Senhor a Moisés: Faze uma serpente ardente, e põe-na sobre uma haste; e será que viverá todo o mordido que olhar para ela. E Moisés fez uma serpente de metal, e pô-la sobre uma haste; e era que, mordendo alguma serpente a alguém, olhava para a serpente de metal, e ficava vivo.

Números, 21:8-9

Autorizada por D-us, abençoada por Moisés e materializando a profecia de Jacob em relação à sua tribo, a serpente de metal terá sido especialmente acarinhada pelos Filhos de Dan, que a tornaram seu estandarte. A serpente prestigiava-os igualmente junto dos Fenícios, ou não fosse ela uma das representações de Baal e símbolo da sabedoria divina... Baal, o deus que eles sempre tinham adorado, e a que se tinham definitivamente rendido, esquecendo Iavé. Mas como podiam eles ter resistido ao chamamento do mais antigo dos deuses de Canaan, tão isolados no norte da terra de Israel e tão perto dos Fenícios, se mesmo Salomão, com toda a sua sabedoria, não fora capaz de o fazer?

Ao contrário dos Cempsos, não temos um conhecimento exacto dos povoados onde os Sefes se instalaram depois da conquista do novo país, mas a matriz orientalizante de Santarém, o seu nome primitivo (Scalabis) e a lendária antiguidade da sua comunidade judaica, fazem-nos equacionar ter sido este povoado, localizado num planalto implantado no mesmo maciço calcário estremenho que já merecera a atenção dos pioneiros neolíticos, terá merecido igualmente a sua atenção e terá sido um dos locais onde se terão instalado. Não deixam de ser curiosas as analogias entre Scalabi(s) e Saalabin (uma cidade dos Filhos de Dan, em Canaan) e entre Balatha (designação árabe do Ribatejo e Oeste, mas herança muito antiga) e Baalath (localidade e região dos Filhos de Dan, mas também a forma feminina de Baal, o deus da fertilidade).

Não se sabe ao certo quando o corónimo Sefarad passou a designar Península Ibérica, embora muitas hipóteses se tenham avançado até hoje. Tudo indica ter sido a tradição rabínica medieval a consolidar o corónimo, designando deste modo a península onde os Judeus viviam a sua Idade de Ouro. No livro de Obadias, Sefarad designa o local onde se encontram os cativos de Jerusalém:

E os cativos deste exército dos filhos de Israel, que estão entre os cananitas, possuirão até Jarefath; e os cativos de Jerusalém, que estão em Sefarad, possuirão as cidades do sul.

Obadias, 1:20

Pensamos que nunca foi equacionada, pela sua obviedade, a ligação entre o etnónimo Sefes e o corónimo Sefarad. A verdade é que, na nossa preocupação de celticizarmos os Sefes, nunca conseguimos abrir o nosso espírito a outras possibilidades... e a etimologia de Sefarad foi sempre uma incógnita. Mas se no hebraico juntarmos o substantivo “tsefah” (serpente) e o verbo “radah” (dominar, governar), teremos um corónimo Tsefarad, Sefarad (= O Domínio das Serpentes). É afinal o mesmo corónimo que os Gregos traduziriam por Ophioussa, com o mesmo significado, «O País das Serpentes», o país que os Sefes/Filhos de Dan renomearam e onde definitivamente se instalariam.

Quando no Atlântico muitos buscam, de forma fantasiosa, os Filhos de Dan entre os Dinamarqueses (Danmark), os ingleses (Lon-Dan) ou os irlandeses (Tuatha dé Danan, do Livro das Invasões), mais crível seria o corónimo Lusitânia, cuja origem é um mistério, ser apenas uma deturpação de Luzidanya, onde o primeiro elemento, Luz, designa a Cidade dos Imortais na tradição hebraica (onde o Anjo da Morte não consegue entrar e para onde o rei David se teria retirado no final da vida e onde ainda vivia) e um osso da coluna, indestrutível pelo Homem, pelo Tempo ou pelos elementos, e o eixo da ressurreição. Eterna evocação dos Filhos de Dan, o corónimo Luzidanya, o nome hebraico de Portugal, perpetuaria a memória da tribo perdida de Israel que ganhara raízes no Ocidente europeu.

Mas as nossas balizas são os factos históricos, não as fantasias. E os factos históricos apontam claramente para que os Filhos de Dan, refugiados no país dos cedros aquando das ferozes campanhas militares de Hazael contra Israel, tenham sido recrutados como mercenários por Pigmalião, seguindo com as suas famílias nas frotas fenícias onde seguiam os homens e mulheres de Tiro que iam colonizar o Mediterrâneo Ocidental. Com o nome de Sefes (=As Serpentes) acabariam por se estabelecer no ocidente da Península Ibérica, onde aliados aos Cempsos conquistariam o país que Avieno nos diz chamar-se Ophiussa, «País das Serpentes». Este corónimo será apenas uma tradução de Sefarad, o nome que na sua língua deram ao país onde definitivamente se instalavam.

Hoje poucos conhecem (e muitos recusam conhecer) o mito fundador da nossa terra ocidental, onde os Filhos de Dan, uma das doze tribos de Israel, fortemente aculturados pelos Fenícios, desempenharam um papel determinante, deixando para o futuro uma pegada histórica e genética no território que é hoje Portugal.

Oitenta gerações de homens e mulheres, vinte longos séculos, permeiam entre o nascimento de Ophiussa e o nascimento de Portugal. Dir-se-ia que a plaina do tempo, arrancando lascas sobre lascas à memória dos vivos, teria feito desaparecer o mito fundador, a lenda da Invasão das Serpentes. Surpreendentemente a tsefah, «a serpente», símbolo e estandarte dos Filhos de Dan (os Sefes), iria sobreviver através dos tempos, ressurgindo sob a forma da serpente alada (o dragão), oficialmente o timbre dos reis de Portugal desde D. João I, embora um documento apócrifo atribua a sua adopção a Afonso Henriques, que teria recuperado a «serpente de Moisés» e a usaria como símbolo pessoal (já fora símbolo pessoal dos reis suevos, que a tinham copiado do «draco» das legiões de Marco Aurélio, no tempo em que os Quados combatiam Roma nas Guerras Marcomanas).

É no Mosteiro da Batalha que podemos encontrar as mais antigas representações do dragão em terras portuguesas. Está presente na chave da abóbada na Capela do Fundador, e numa pedra de armas sobre a porta sul da Igreja. Em ambas surge o dragão representado de frente. No selo real, porém, o dragão só se irá impôr a partir de D. Afonso V (num selo de chancelaria deste soberano, apenso a um documento datado de 1450, surge-nos o dragão, de perfil, bem visível e expressivo).

Com D. Manuel I, um dos maiores cultivadores do património heráldico português, as armas reais adquirem belíssimas representações. No armorial designado por «Livro da Torre do Tombo» temos uma explêndida iluminura, o padrão oficial das armas do rei de Portugal, com o dragão de ouro, de frente, olhando à esquerda do observador. Esta é a melhor fonte para conhecermos a cor do dragão do rei de Portugal – ouro, o mais nobre dos metais – e não verde como alguns o representarão mais tarde, erroneamente.

Já no século XV se sabia no estrangeiro que o dragão era a cimeira do rei de Portugal, e por extensão o símbolo do país, com vários armoriais representando este animal fantástico, de ouro ou prata, sempre enqunto símbolo de Portugal. Assim acontece no Armorial Equestre do Tosão de Ouro e da Europa (c. 1450), onde uma espectacular figura de cavaleiro – o Roy de Portighal – tem como timbre, sainte da sua coroa aberta, um dragão de ouro, posto de frente, com os seus membros visíveis. O mesmo se repetirá nos armoriais de Clemery (século XV), Donaueschigen (1433), Grunenberg (1483), Schnitt (século XV).

No século XVI D. Sebastião é o último rei a representar o dragão como timbre da monarquia portuguesa e de Portugal. Mas no século XVII, restaurada a independência, numa curiosíssima estampa da obra Lusitania liberata ab injusto Castellanorum, datada de 1645, vê-se um dragão possante, coroado com a coroa real fechada, atacando e vencendo um leão – o dragão português vencendo o leão espanhol. Este simbolismo do dragão, finalmente identificado com a nação portuguesa e não só com os seus reis, está bem patente numa brilhante metáfora de um dos sermões do padre António Vieira, que nos confirma o dragão nas armas de Portugal no século XVII.

Eu não direi que S. João no seu Apocalipse levantou figura aos que nascem em Portugal; mas há muitos dias que naquelas suas visões de Patmos tenho observado uma notável pintura, na qual estão retratadas ao vivo as fortunas ou influências deste fatal nascimento:

Signum magnum apparuit in coelo mulier amieta Sole, et Luna sub pedibus ejus, et in capite ejus corona Stellarum duodecim: et in utero habens, clamabat parturiens. Visum est et aliud signum in coelo: et ecce Draco magnus: et Draco stetit ante mulierem, quae erat paritura; ut cum peperisset risset filium ejus devoraret.

Esta é em suma a história da visão, na qual diz o Evangelista, que viu primeiramente uma mulher vestida do Sol, coroada de Estrelas, e com a Lua debaixo dos pés, a qual estava de parto, e dava vozes. E que logo apareceu diante desta mulher um grande Dragão, o qual com a boca aberta, estava esperando que saísse à luz o filho para lho tragar e comer, tanto que nascesse. Infeliz menino, antes destinado às unhas e dentes do Dragão, que nascido! Mas que Dragão, que mulher, e que filho é este? O enigma é tão claro, que pelas figuras sem letra se pode entender. A mulher vestida de luzes, o mesmo nome diz, que é a Lusitânia: as luzes são as que ouvistes o ano passado; e o ter a Lua debaixo dos pés, é a maior expressão da mesma figura; porque a Lusitânia foi a primeira em toda a Espanha, que sacudiu o jugo dos Sarracenos, e tantas vezes então, e depois meteu debaixo dos pés as Luas Maometanas. O parto, que a fazia bradar, são os filhos, ou partos da Lusitânia, não todos, senão aqueles com quem ela dá brado no mundo. E o Dragão, finalmente já preparado para tragar esses filhos, é aquele mesmo Dragão que Portugal tem por timbre das suas armas; porque é timbre da nossa Nação, tanto que sai à luz quem pode luzir, tragá-lo logo, para que não luza. De maneira que a mulher e o Dragão em tão diferentes figuras, uma humana, outra sem humanidade, ambas vêm a ser a mesma coisa; porque como mulher pare os filhos, e como Dragão os traga depois de nascidos.

Padre António Vieira
Sermão de Santo António


Até ao fim da monarquia a serpente alada (dragão) estará sempre presente, nas diversas representações heráldicas portuguesas (no mobiliário real, por exemplo, como pode ser verificado no Palácio da Ajuda). Uma das mais notáveis representações, contudo, é o Carro Triunfal, o coche da embaixada ao Papa Clemente XI, que fazia parte do conjunto de cinco coches temáticos e dez de acompanhamento que integraram o cortejo da Embaixada enviada pelo rei D. João V ao Papa, em 1716. Alusivo ao tema da coroação de Lisboa, capital do Império, vitoriosa na defesa da Fé cristã.

O exterior apresenta caixa aberta forrada a seda vermelha, decorada com esculturas de talha dourada, em estilo barroco. No jogo dianteiro apresenta uma alegoria em que um génio parece conduzir o carro, tendo a seu lado as figuras simbólicas do Heroísmo e da Imortalidade. No cabeçal, do jogo traseiro, a figura de Lisboa coroada pela Fama e pela Abundância que segura uma elegante cornucópia de flores e frutos. Aos pés de Lisboa, o dragão alado, símbolo da Casa Real, quebra o crescente muçulmano, perante a figura de dois escravos agrilhoados, que representam a África e a Ásia.

Com a revolução republicana toda a simbologia monárquica e todos os simbolos que estavam relacionados com a monarquia são varridos. São vandalizados os monumentos e as coroas arrancadas. A bandeira nacional, a liberal, bipartida de azul e branco, será substituída por outra, igualmente bipartida, agora de vermelho e verde. De igual modo a serpente alada, o dragão, que Afonso Henriques tornara seu símbolo pessoal, se iria perder.

Mas não acreditamos que a Serpente de Moisés, presente no território português desde c. 800 a. EC., quando os Filhos de Dan/Sefes aqui aportaram nos seus navios, se tenha perdido para sempre. A serpente e o dragão fazem parte do nosso simbólico, fazem parte da História de Portugal. Este é, afinal, o País das Serpentes, a terra de Ophiussa.

José Galazak

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sábado, 16 de janeiro de 2010

Yaish ibn Yahya «ben Rabbi» (= Mem Ramires): Um príncipe judeu, herói da conquista de Santarém


A mitificação da figura do primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques, conheceu várias fases, a primeira das quais terá tido início nos fins do século XII, tendo sido levada a cabo pelos monges de Santa Cruz de Coimbra, mosteiro fundado em 1131 por D. Teotónio (depois S. Teotónio) e onze outros religiosos, pertencentes à ordem dos Cónegos Regrantes de S. Agostinho.

Uma longa narrativa épica em latim (um poema em prosa, na feliz designação de A. Herculano), com o pomposo título de “Quomodo sit capta Sanctaren civitas a rege Alfonso comitis Henrici filio” («Como foi capturada a cidade de Santarém pelo rei Afonso, filho do conde Henrique») eleva a figura do primeiro rei de Portugal à altura de um herói mítico. Incluído por A. Herculano na “Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores” (V. I), publicado em 1854, este manuscrito seria por ele renomeado de “De expugnatione Scalabis” («Da conquista de Santarém»), nome pelo qual é actualmente conhecido.

Os pormenores da empresa são sobejamente conhecidos: Afonso Henriques, querendo conquistar aos Mouros a poderosa cidade de Santarém, simultaneamente um ninho de aguerridas vespas de onde partiam as algaras que açoitavam as terras de Coimbra e uma barreira que impedia a progressão das suas tropas pela Balatha muçulmana (Estremadura) e mais para sul, para as terras de Além Tejo, urdiu a melhor forma de a tomar.


É então enviado um espião a Santarém, Mem Ramires de seu nome, cavaleiro e homem de confiança do rei, que percorre incógnito a cidade e o poderoso castelo do governador, Abu Zakariya, para avaliar as suas vulnerabilidades defensivas. Cumprida com êxito a missão, regressa Mem Ramires a Coimbra com as preciosas informações. Afonso Henriques reúne então uma pequena força militar, constituída por cavaleiros da sua confiança, e parte para Santarém, que alcança ao fim de quatro dias, jornadeando de noite e acampando de dia, de modo a iludir os esculcas sarracenos. Numa noite de sábado, de 14 para 15 de Março de 1147, socorrendo-se de dez escadas de assalto, um grupo de homens capitaneados por Mem Ramires sobe às muralhas, domina as sentinelas, hastea o pendão real e abre os portões para que o resto do exército possa entrar. O formidável castelo de Santarém voltava às mãos portuguesas, desta vez para sempre.

Eis, muito resumidamente, o essencial da narrativa épica «De Expugnatione Scalabis», que por ter sido escrita no final do século XII pode ser considerado um relato credível sobre a conquista de Santarém e onde Mem Ramires nos aparece como figura-chave, aliada à do rei. Mas quem é afinal Mem Ramires, esse cavaleiro com quem o rei de Portugal partilhava os seus sonhos militares? Não sabemos. É uma personagem misteriosa. Não pertence às antigas famílias que possuem honras e tenências entre o Minho e o Vouga, nem pertence à nobreza mais recente, de origem franca ou moçárabe, que habita em Coimbra, enriquece com a guerra e vive de postos de alcaides. A verdade é que este herói surge do nada para conquistar Santarém e eclipsa-se de seguida, como se na verdade nunca tivesse existido. Mas «De Expugnatione Scalabis», por ter sido escrita no final do século XII - seguramente com muitos dos seus participantes ainda vivos – pode e deve ser considerado um relato credível. Acreditamos que o essencial da história está lá… mas adaptado pelos historiógrafos de Santa Cruz. Vejamos como e porquê.

Olhemos primeiro para a realidade social e económica da cidade que Mem Ramires ajudou a conquistar. Santarém era um paraíso na Terra para os muçulmanos. A fertilidade das suas lezírias era lendária (em 40 dias as searas estavam prontas para ceifar!) e o rendimento médio do grão era de cem por um, sendo nos melhores anos de duzentos por um. Os melões eram enormes e doces como o mel. Hortas e pomares produziam legumes e frutos excelentes. O seu porto fluvial recebia os barcos de alto mar que, subindo o Tejo, abasteciam directamente a cidade.

Fonte: www.flickr.com

Esta riqueza agrícola – que alguns geógrafos árabes assemelham à do Egipto, comparando as cheias do Tejo às do Nilo – e a necessidade de a comercializar para vários pontos do Gharb e do Andalus, fizera domiciliar em Santarém uma numerosa comunidade judaica, talvez desde os tempos do Império Romano, e não é de estranhar que todos os relatos a indiquem como tendo a mais antiga sinagoga do ocidente peninsular. Por outro lado Coimbra dispunha igualmente de uma numerosa comunidade judaica, aí instalada provavelmente nos tempos em que Qulumriyya era uma cidade muçulmana, e que aí permanecera depois da reconquista cristã.

Quando Afonso Henriques, decidido a conquistar Santarém, opta por enviar um espião à cidade, ele sabe que esse homem não terá tarefa fácil. Santarém, para além do seu castelo quase inexpugnável, é uma caserna. A sua numerosa e aguerrida guarnição militar tem uma longa experiência de guerra, e o alcaide, Abu Zakariya, é uma velha raposa, que tem sabido conter os Portugueses nas suas fronteiras, pela latitude de Leiria, ameaçando o castelo e fustigando os seus termos. Santarém é um ninho de víboras, e o rei de Portugal sabe-o bem. Ao menor deslize o seu espião será denunciado e morto.

O homem que enviar a Santarém não pode levantar quaisquer suspeitas entre os Mouros. Tem de caminhar entre eles como se fosse mais um habitante da cidade. Um cristão, mesmo um moçárabe de Coimbra, conhecedor da língua de Mafoma, poderia fazer perigar a missão, pois não teria contactos em Santarém, que lhe servissem de retaguarda em caso de suspeita. Em Coimbra viviam cristãos e judeus, e em Santarém viviam muçulmanos e judeus. E nunca cristãos e muçulmanos deixaram de manter relações comerciais entre si, mesmo nos piores períodos de guerra. Os judeus encarregavam-se de fazer a ponte entre os dois mundos… como o faziam ali, entre Coimbra e Santarém. Podendo apostar na lealdade de um judeu de Coimbra, quem senão um elemento desta comunidade para entrar tranquilamente em Santarém sem despertar as atenções dos Mouros? Quem mais que um almocreve judeu – ou alguém assim disfarçado, mas com sólidas ligações à comunidade judaica de Santarém – para efectuar uma empresa tão arriscada sem atrair as atenções?

A ideia terá congeminado no espírito de Afonso Henriques, e rapidamente se tornou uma certeza para o rei: para que a missão de espionagem fosse um sucesso o homem a enviar a Santarém teria de ser um judeu, um aliado da sua inteira confiança com ligações sólidas na cidade. Aí poderia mover-se à vontade, entre o seu povo, sem que os muçulmanos dele desconfiassem. Afinal, seria apenas mais um judeu na sua azáfama mercantil…

O rei de Portugal tinha o homem certo para essa missão. O seu nome era Yaish ibn Yahya, e embora português de nascimento, nas suas veias corria o sangue do rei David, de quem era um dos mais insignes descendentes. Por esse facto era também conhecido por Ha-Nasi («o príncipe»). Era filho de Hiyya al-Daudi, venerável rabino, conselheiro de Afonso Henriques, gaon dos judeus de Sefarad (acabaria por falecer numa das suas viagens, em 1154) e poeta litúrgico, cujos hinos ainda hoje são usados nas comunidades sefaradim, um pouco por todo o mundo.


Longa viagem fizera Hiyya al-Daudi até chegar a Portugal, pois nascera na Babilónia, em Pumbedita, bisneto de Hezekiah Gaon, o 38.º exilarca e último líder desta grande academia talmúdica, torturado até à morte em 1040. Não se sabe em que circunstâncias aparece Hiyya al-Daudi na corte portuguesa, em Coimbra, mas não é de excluir ter vindo para Portugal com D. Henrique, pai de Afonso Henriques, aquando da peregrinação deste à Palestina entre os anos de 1103 e 1104, acompanhado por D. Maurício Burdino, o bispo de Coimbra (que se tornaria depois o antipapa Gregório VIII, entre 1118 e 1121).

São estes os pergaminhos do homem que tornou possível a conquista da cidade de Santarém, o príncipe judeu que os cónegos de Santa Cruz, indignados com a mitificação de um herói de religião judaica, tornaram cristão. E deste modo, com uma simples adaptação fonética do nome, o judeu Ben Rabbi tornava-se o cristão Mem Ramires.

Yaish ibn Yahya, conhecido entre o seu povo por «Ben Rabbi» e por «Ha-Nasi», e com a alcunha entre os cristãos de «O Negro», é o fundador da mais distinta família judia portuguesa (e uma das mais distintas famílias judias europeias), cujos descendentes, com os apelidos Ibn Yahya, Negro e Preto/Pretto, podemos encontrar um pouco por todo o mundo. Um excelente guerreiro, em cujas veias corria o intrépido sangue do rei David, Yaish ibn Yahya foi amigo e companheiro de armas de Afonso Henriques. Pela sua lealdade e coragem recebeu o título de “Dom”, só concedido pelos reis de Portugal em recompensa de grandes serviços, assim como algumas honras e tenências, das quais as mais conhecidas são as das localidades de Unhos, Frielas e Aldeia dos Negros (esta última no concelho de Óbidos). D. Yaia (como seria conhecido) receberia igualmente a alcunha de «O Negro», que transmitiria aos seus descendentes (Preto e Pretto são variações do original) a par de Ibn Yahya.

Muitas inverdades se tem escrito a este respeito, seja confundindo as personagens de Yaish ibn Yahya (nascido entre 1110 e 1120 e falecido em 1196) com seu filho, Yahya ben Yaish Ibn Yahya (1150?-1222). Este último, que Meyer Keyserling, erradamente, faz contemporâneo de Afonso Henriques, é na verdade contemporâneo de D. Sancho I, a quem serve como almoxarife do reino. Judeu riquíssimo, senhor de vastos domínios, tal como seu pai conselheiro do rei, herdará dele o título de «Dom» e a alcunha de «O Negro».

Muitos dizem vir esta alcunha do facto de serem senhores da Aldeia dos Negros, em Óbidos. Não cremos que assim seja. Na verdade mais acreditamos que a alcunha, a exemplo de outras alcunhas, comuns na época (tomemos por exemplo Fernão Peres «Cativo», o poderoso mordomo do reino) adviesse de características particulares, neste caso relacionadas com a cor do vestuário (o vestuário dos cavaleiros cristãos era o brial branco com a cruz, sobre a cota de malha). Enquanto judeu Yaish ibn Yahya, para não usar o símbolo da cruz, vestiria de negro, donde herdaria a alcunha. Mas assim sendo fica por explicar a origem do topónimo «Aldeias dos Negros…

Acreditamos, embora não tenhamos provas documentais para o comprovar, que Yaish ibn Yahya não seria o único judeu a combater ao lado de Afonso Henriques, havendo mesmo uma brigada de combatentes judeus sob as ordens de Yaish. Não deixa de ser sintomático que um dos três embaixadores de Afonso Henriques que vai a Santarém informar Abu Zakariya de que as tréguas do rei dos Portugueses estavam rompidas se chame Martim Mohab (seria Matan Moab?). Lembramos que Moab é o nome bíblico de uma região da Transjordânia que confina com o Mar Morto, e que foi conquistada pelo rei David (havia um poderoso clã judaico conhecido por Pahat-Moab, «governador de Moab», que dizia descender dos antigos delegados do rei David na região).

Se uma brigada de combatentes judeus acompanhasse Yaish ibn Yahya – o que não seria de estranhar, se tivermos em conta que estamos em presença de um príncipe judeu – então todos vestiriam de negro. A Aldeia dos Negros não teria, assim, nada a ver com os Mouros (só por má vontade e desconhecimento se pode classificar como “negro” o povo Amazigh, os Mouros, a única raça branca de África), sendo apenas o nome dado a uma aldeia nas proximidades de Óbidos, “colonizada” pelos guerreiros judeus que seguiam Yaish ibn Yahya e lutavam ao lado dos cristãos, ao lado dos seus irmãos portugueses.

Talvez a História, um dia, faça justiça a todos estes heróis judeus, também eles pais fundadores da pátria portuguesa e que Portugal tão vilmente tratou. Talvez um dia possamos todos admitir corajosamente que o conquistador de Santarém se chamava Yaish ibn Yahya, era um príncipe judeu e uma notável semente do rei David.

David e Golias - Caravaggio

José Galazak